segunda-feira, 20 de junho de 2016

Paul Gubarev - Sobre a “Primavera Russa” no Donbass: a luta por direitos democráticos e a justiça social:


Gênese da Ucrânia e dos ucranianos - Independência: ponto de bifurcação no caminho para a "Construção da Nação"

A Ucrânia é um enorme país multi-étnico para os padrões europeus. Situada em uma linha de ruptura entre a civilização ocidental e a civilização russa, a Ucrânia gerou uma grande quantidade de sub-grupos étnicos e de identidades que ou aceitam ou rechaçam certos elementos da cultura e da civilização dos povos vizinhos. Antes de 1939, os ucranianos formavam maiorias nos países vizinhos e, com frequência, foram perseguidos por motivos religiosos, étnicos ou culturais. A unificação final dos territórios ucranianos se deu somente durante a República Socialista Soviética da Ucrânia  até então, a autodeterminação dos "ucranianos" não havia recebido muita atenção; a generalização deste etnônimo teve lugar somente durante o período soviético da história da Ucrânia. 

Na Ucrânia, também foram adicionados territórios onde os ucranianos eram minoria – particularmente, o Donbass e a península da Crimeia. A unificação da Ucrânia coincidiu com o processo de crianção do Estado ucraniano, fundamentado na ideologia soviética: nos princípios do internacionalismo, da igualdade e da justiça social. Assim, as contradições entre as diferentes nacionalidades e etnias na Ucrânia se davam de forma amena, de modo que as diferenças entre os estilos de vida não tinham influência sobre a atitude dos ucranianos. Na ciência histórica soviética se desenvolvia o conceito de "povos irmãos" para os russos, ucranianos e bielorrussos. Evidentemente, existiam confrontações entre os diferentes grupos regionais dentro do país, no entanto, tal não afetava a identidade nacional. Esta situação mudou somente depois do colapso da União Soviética, devido à tendências centrífugas que provocaram o crescimento do nacionalismo ucraniano. 

A ideologia (nacionalista) da Ucrânia Independente só era relevante nas regiões ocidentais, assim como em Kiev, que queria seguir o rastro das tendências mundiais do ponto de vista informacional e político. Em consequência destes processos, aparecia na Ucrânia uma nova linha de cisão entre as regiões e suas divisões de classe. O nacionalismo tinha se convertido em uma nova ideologia das autoridades ucranianas e se dirigia tanto contra as minorias nacionais da Ucrânia, quanto contra os seguidores da ideologia anterior [soviética]. Ao mesmo tempo, as regiões ocidentais, devido a suas tendências ao nacionalismo e ao anticomunismo, se autodeclaravam como a "elite cultural", de modo que as regiões industriais (compostas por russos e majoritariamente de idioma russo) se transformaram em regiões de cidadãos de segunda classe. 

O conflito entre regiões poderia ter sido suavizado através de reformas direcionadas ao estabelecimento de uma certa autonomia regional. No entanto, tal ia de encontro a ideologia do "novo ucraniano", que tentava impor a todos uma única língua comum e uma única identidade comum. Exemplificando: na Ucrânia se propunha algo como o modelo da Alemanha unificada por Bismarck – muito embora não fossem levadas em conta as objeções sobre o perigo de se replicar semelhante modelo, em seus respectivos processos de desenvolvimento, na Ucrânia. O resultado deste processo de materialização do novo tipo de cidadão, que durou mais de vinte anos, se consolidou no Maidan de Kiev e acabou se transformando em uma espécie de gigantesca réplica a partir do qual teria de nascer o protótipo do "super-ucraniano", que encarnaria os ideais do projeto unitário.

Precisamente este modelo de unificação era inaceitável para os moradores do Donbass e da Crimeia, pois se tratava de uma maneira de destruir suas identidades regionais, étnicas e culturais. O levante antifascista no Donbass, que culminou na aparição da nova identidade nova-russa, foi dirigido contra o "super-ucraniano" e contra a nação ucraniana, sua cultura e sua condição de Estado.

O levante na Crimeia e no Donbass: uma luta por direitos democráticos:

A transição de uma sociedade soviética para uma sociedade pós-soviética se efetivou sob a insígnia da democracia e das liberdades civis  ainda que, na verdade, o processo de transição não tenha tido nada a ver nem com a democracia e nem com os direitos humanos. E não se tratou só da perda dos direitos civis fundamentais que as pessoas haviam conquistado na sociedade soviética, mas também dos direitos ao trabalho e a seguridade social: na sociedade pós-soviética, os seguidores da ideologia "incorreta" foram perseguidos. As ideologias "correta" e "incorreta" tinham trocado os papéis. 

Um comportamento muito estranho é o apresentado por parte da comunidade internacional, que advoga que os direitos humanos têm alguma relação com os recentes acontecimentos na Ucrânia. Os ativistas de direitos humanos, ucranianos e internacionais, defenderam o direito dos ativistas do Maidan de atacarem a polícia com artefatos pirotécnicos  de assaltar edifícios do governo e, inclusive, de utilizar estes edifícios como câmaras de tortura. Tudo isto, incluindo a tomada de delegacias de polícia e o saqueamento de armazéns, foi tido como protesto pacífico; qualquer tentativa de resistência por parte das autoridades provocava indignação nos ativistas de direitos humanos e era considerada como violação dos direitos humanos, enquanto que, simultaneamente, as forças que tomavam o poder em Kiev recebiam carta branca para o uso de qualquer forma de violência contra o leste do país. Os políticos europeus, estadunidenses e os meios de comunicação, que ontem mesmo se queixavam dos policiais que usavam granadas de efeito moral e balas de borracha contra os "rapazes", de repente passaram a fazer vista grossa para os crimes de guerra de verdade: bombardeios de escolas, hospitais e áreas residenciais no Donbass.

O desdém por parte da comunidade internacional dos direitos humanos e as violações de direitos civis desde o ponto de vista da conveniência estatal têm uma longa história na Ucrânia. Tudo começou com a aprovação da nova Lei da Política Linguística, que declarou o ucraniano como único idioma oficial do país (que é efetivamente bilíngue). A língua russa, junto a ucraniana, seguia sendo utilizada em todas as áreas do cotidiano: no trabalho, na educação, nos meios de comunicação e nos tribunais. Porém, na prática, isto foi ignorado. Os legisladores ucranianos insistentemente aprovavam leis inconstitucionais e regulamentos destinados a limitar o alcance da língua russa. Em primeiro lugar, na educação e na administração. Para tanto, as autoridades ucranianas excluíam da administração pública as regiões industriais e, simultaneamente, fortaleceram as instituições da desigualdade: o idioma russo na Ucrânia é a língua da classe média e da classe trabalhadora dos subúrbios e das grandes cidades, isto é, o idioma dos mais capacitados entre as massas sociais.

Não obstante, o movimento ucraniano dos direitos humanos ignorou por completo os direitos humanos e o aspecto social do problema linguístico, considerando a luta por direitos da população russa como mero irredentismo russo e separatismo. O resultado desta política foi a revolta da afirmação da cultura e da língua russa na Crimeia e no Donbass e a atualização do projeto da "Nova Rússia" como uma resposta a discriminação de anos. Entretanto, o Donbass (e a Nova Rússia em seu conjunto) segue sendo uma região multi-étnica. Somos plenamente conscientes da presença de um forte aspecto ucraniano na Nova Rússia e cremos que a proteção dos direitos é prioridade no processo de construção do Novo Estado. 

Objetivos sociais da "Primavera Russa":

O Donbass e, em geral, a Nova Rússia, são tradicionalmente regiões de trabalhadoras e sua história está indissoluvelmente atada a história da luta dos trabalhadores por igualdade e justiça social. Sua presença dentro de uma Ucrânia Independente provocou, para a industrializada Nova Rússia, não só uma discriminação por razões linguísticas e étnicas, como também e principalmente o colapso do Estado social. Nas primeiras etapas da independência da Ucrânia, o Donbass se converteu em um centro de protestos contra a criação e o fortalecimento das instituições das desigualdades sociais na Ucrânia pós-soviética. O rechaço ao modelo econômico socialista para a região se mostrou um desastre, a redução e o fechamento de empresas por falta de rentabilidade, o saque e o desmantelamento de fábricas para a sucata e o fechamento de minas são sem precedentes; retornava-se para os padrões de vida que existiam no capitalismo do século passado.

Como resultado, se formou um modelo criminoso e oligárquico no Donbass, que gerou poderosos clãs políticos. Estes clãs, em sua luta por influência em Kiev, se escondiam atrás do povo do Donbass, falando em seu nome. As elites locais ameaçavam a população da região com o crescimento do nacionalismo em Kev, proclamando-se como defensores dos interesses da população. Não obstante, como demonstraram os acontecimentos do ano passado, os políticos e oligarcas de Donetsk fracassaram em sua tarefa. Eles traíram o seu próprio povo com o fim de preservar sua parte do Capital, entregando o controle do país nas mãos dos nacionalistas radicais sem oferecer resistência. Como resultado, os mineiros, operários metalúrgicos e desempregados de Donetsk tiverem que defender seus direitos e liberdades pela via armada. 

O governo faltou com a proteção dos interesses do povo. Seu regresso ao Donbass e, com ele, o regresso a velha ordem, em nossa opinião, não tem sentido. Assim, o Donbass obteve a oportunidade única para construir um novo tipo de Estado, baseado nos princípios da justiça social e da igualdade.

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