O
texto que se segue foi extraído do livro Teoria do Mundo Multipolar (2012) de Alexander Dugin, traduzido para o português
pelo Instituto de Altos Estudos em Geopolítica & Ciências Auxiliares (IAEG) e adaptado por nós para o idioma brasileiro. Trata-se do
fragmento de um capítulo em que Dugin estabelece uma confrontação entre as
principais correntes teóricas contemporâneas das Relações Internacionais
(realismo, liberalismo, escola inglesa, neo-marxismo, teoria crítica,
pós-modernismo, feminismo, normativismo, sociologia histórica e construtivismo)
e a sua teoria da multipolaridade. Neste caso, reproduzimos o trecho onde ele
aborda a especificidade da teoria marxista ou neo-marxista, tendo como
principal referência teórica a obra de Immanuel Wallerstein
e sua teoria do Sistema-Mundo.
A apreciação de Dugin sobre a teoria marxista parte de uma compreensão geral do marxismo e da maneira marxista de encarar a realidade: a tese de que a moderna propriedade burguesa configura-se como uma fase generalizada e normativamente universal do desenvolvimento histórico da humanidade, isto é, como uma necessidade histórica, material e espiritualmente antecedente a propriedade socialista, é tida por Dugin como uma ideia central na teorização marxista.
A apreciação de Dugin sobre a teoria marxista parte de uma compreensão geral do marxismo e da maneira marxista de encarar a realidade: a tese de que a moderna propriedade burguesa configura-se como uma fase generalizada e normativamente universal do desenvolvimento histórico da humanidade, isto é, como uma necessidade histórica, material e espiritualmente antecedente a propriedade socialista, é tida por Dugin como uma ideia central na teorização marxista.
A respeito disto,
poder-se-ia argumentar que a teoria marxista, mesmo que em algum grau,
relativizou semelhante tese, reconhecendo que a percurso etapista do processo histórico não constitui uma lei geral do
desenvolvimento social, mas apenas uma de suas possibilidades. Ver, por
exemplo, o prefácio à edição russa de 1882 do Manifesto Comunista (MARX; ENGLES, 2012), onde Marx comenta a
possibilidade do modo de produção campesino-comunal do tipo obchtchina, até então dominante na
Rússia, evoluir para uma “forma superior, comunista, de propriedade conjunta da
terra” (p. 11) sem necessariamente passar pela fase capitalista: possibilidade esta que pode ser considerada marginal e teoricamente periférica em termos de ortodoxia marxista, haja visto não haver qualquer elaboração concreta, nos termos do materialismo dialético, a respeito do tema. O próprio Lênin, posteriormente, em seu Duas Tácticas da Social-Democracia na Revolução Democrática (LÊNIN, 1905), rechaçou tal possibilidade como uma "elucubração dos populistas e dos anarquistas", asseverando ser impossível para a Rússia "escapar do capitalismo ou saltar por cima dele por qualquer meio que não o da luta de classes no terreno e dentro dos limites desse mesmo capitalismo".
De todo modo, a crítica de Dugin ao marxismo é simples: a Weltanschauung burguesa moderna não é econômica, histórica, societária ou moralmente superior a outros modos pré-modernos de organização político-social. A premissa de que o ideário burguês é um "avanço" ou um "progresso" em comparação aos modos antigos de produção está no cerne da rejeição e na crítica de Dugin e da Quarta Teoria Política ao marxismo.
De todo modo, a crítica de Dugin ao marxismo é simples: a Weltanschauung burguesa moderna não é econômica, histórica, societária ou moralmente superior a outros modos pré-modernos de organização político-social. A premissa de que o ideário burguês é um "avanço" ou um "progresso" em comparação aos modos antigos de produção está no cerne da rejeição e na crítica de Dugin e da Quarta Teoria Política ao marxismo.
O marxismo e o neo-marxismo nas
Relações Internacionais (RI) são extremamente úteis à Teoria do Mundo
Multipolar (TMM) como arsenal doutrinário crítico do universalismo da
civilização ocidental e da sua pretensão a superioridade moral baseada nos
fatores de sua superioridade financeira, material e tecnológica. A civilização
ocidental da era moderna optou pela via capitalista e, assim, limitou seus
horizontes. Não obstante, a encarnação material do sucesso em um alto nível de
desenvolvimento e de eficácia econômica das ações dos mercados e, mais
recentemente, na prioridade dada ao desenvolvimento do setor financeiro, podem
ser decisivos somente se aceitarmos o padrão capitalista, não só a nível
material, mas também no nível dos valores sociais, culturais e espirituais. Foi
o que demonstrou perfeitamente Max Weber, que identificou o capitalismo como a
expressão da ética protestante, a partir do qual a recompensa do homem no
decorrer da vida, por meio do sucesso e da riqueza, é um reflexo direto de sua
dignidade moral. A equiparação da riqueza à moral, característica da sociedade
ocidental da era moderna, possui raízes religiosas e culturais. O Capital e o
capitalismo tornaram-se não só o critério do poder, mas também o critério da
verdade.
O marxismo desafia semelhante abordagem e,
embora reconheça a influência do Capital, rejeita sua pretensa superioridade
moral. A ética marxista organiza-se de modo oposto: o Bem se encontra na classe
trabalhadora (proletariado) que, sob o capitalismo, encontra-se escravizada
pela parasítica classe burguesa. No marxismo, rico é sinônimo de Mal.
Consequentemente, o desenvolvimento material, e a concentração de Capital em
determinado país, não querem dizer nada, podendo demonstrar até mesmo que um
tal pais configura-se como uma das sociedades mais injustas, más, devendo, como
tais, serem rejeitadas.
Na análise das RI, tal ética marxista leva à
apreciação moral do “abastado Norte” e do sistema capitalista como uma
expressão histórica, geográfica e social do mal mundial. O Ocidente não só não
se manifesta como um modelo a seguir, nem na Terra Prometida – na qual se
encontraria a solução para todos os problemas –, como também se torna a
cidadela da exploração, do engano, da falsidade, da violência e da injustiça.
Sem concordarmos com todas as conclusões
dogmáticas desta abordagem a cerca da revolução mundial e do papel messiânico
do proletariado, a TMM aceita a abordagem marxista no que diz respeito a sua
apreciação da natureza e da origem do Ocidente capitalista, denunciando-o como
um modelo de exploração assimétrica que impõe os seus critérios civilizacionais
(capitalismo, livre mercado, demanda pelo lucro, materialismo, consumismo,
etc.) a todos os povos e sociedades. O
capitalismo é o aspecto econômico-material do universalismo e do colonialismo
ocidental. Ao aceitarmos a lógica do Capital, mais cedo ou mais tarde
seremos obrigados a aceitar e a reconhecer o Ocidente e a sua civilização como
guias, pontos de orientação, modelos exemplares e horizontes de
desenvolvimento: o que está em completa contradição com a ideia de uma ordem
mundial multipolar e da valorização da pluralidade civilizacional. Algumas
civilizações podem aceitar a prosperidade material e a forma capitalista de
atividade econômica como aceitáveis e desejáveis, mas outras podem ser que não.
O capitalismo não é obrigatório e não é também a única forma de organização
econômica. Pode ser aceito ou rejeitado. A equiparação do bem-estar material á
dignidade moral pode ser justificado por uns e rejeitado por outros. Portanto,
para a TMM, o vetor anticapitalista do marxismo, e do neo-marxismo nas RI, bem
como a denúncia característica do modelo de desenvolvimento dependente, são
componentes que podem bem aplicados. O mesmo vale par a acrítica do “abastado
Norte” e ao apelo à oposição ao sistema mundial. Sem esta resistência e
oposição será impossível o advento do mundo multipolar.
A principal diferença entre a TMM e a
teoria neo-marxista do sistema mundial (bem como em relação aos projetos de
Negri, Hardt e de outros altermundialistas) consiste no fato da TMM não
reconhecer, em absoluto, o fatalismo histórico das teorias marxistas, que
insistem na premissa do capitalismo como uma fase generalizadamente obrigatória
e universal do desenvolvimento histórico, a qual será seguida da fase
igualmente fatal e irrevogável da revolução proletária. Para a TMM, o
capitalismo é uma forma empiricamente fixa de desenvolvimento da civilização
ocidental-européia, enraizada na cultura desta e difundida quase em escala
planetária. Mas uma análise profunda do capitalismo nas sociedades
não-ocidentais demonstra, com certa consistência, a sua natureza simuladora e
superficial, dotada de propriedades semânticas muito distintas e representando
sempre algo atípico e diferente da formatação socioeconômica que prevalece no
Ocidente moderno. O capitalismo surgiu no Ocidente e pode tanto continuar a
evoluir como perecer. Mas a sua expansão para além do mundo ocidental, embora
condicionada pela tendência expansionista do Capital, não tem razão de ser nas
sociedades não-ocidentais onde ele projeta-se. Cada civilização possui sua
própria noção de tempo, história, economia e lógica de desenvolvimento
material. O capitalismo invade as civilizações não-ocidentais como perpetuador
das práticas coloniais e, como tal, pode e deve ser rejeitado, alvo de
resistência, como se se tratasse de uma agressão por parte de uma cultura e de
uma civilização alienígena. Assim, a TMM insiste na luta contra o “Norte rico”,
que é travada atualmente em todos os pontos do mapa da humanidade e,
principalmente, no “Segundo Mundo” (a semi-periferia, nas palavras de I.
Wallerstein). O mundo multipolar não deve surgir depois do liberalismo (como acreditam os neo-marxistas), mas ao invés do liberalismo. Assim sendo, a
luta contra o liberalismo não deve se dar em nome daquilo que irá substituí-lo
depois que este se instalar em escala planetária, mas já, de modo a não permitir que ele alguma vez se estabeleça em
escala mundial. Para as civilizações não-ocidentais é desnecessário passar pela
fase do desenvolvimento capitalista. Tampouco é necessário mobilizar suas
populações em prol da revolução proletária. As elites e as massas dos países da
“semi-periferia”, a despeito dos neo-marxistas, não estão de todo obrigados a
dividirem-se socialmente e a integrarem-se nas duas classes internacionais – a
burguesia mundial e o proletariado mundial –, perdendo, assim, todas as suas
características civilizacionais. Pelo contrário, as elites e as massas
pertencentes a uma mesma civilização devem reconhecer a sua identidade comum,
cujo significado deve pesar mais que o da identidade de classe. Se em relação à
solidariedade internacional da burguesia e, em menor extensão, do proletariado,
os marxistas possuem alguma razão (pois se tratam de Estados capitalistas e
burgueses nos quais, de fato, domina a lógica do Capital), no caso das
civilizações não-ocidentais as coisas não podem ser colocadas desta forma. O
topo e a base no mundo islâmico, por exemplo, estão muito mais cientes da sua
cultura islâmica do que seus equivalentes classistas em outras civilizações –
em particular no Ocidente. E este sentimento de comunhão, de unidade, não deve
ser corroído e nem abalado (seja pelo cosmopolitismo liberal, pelo neo-marxismo
ou pelo anarquismo de tipo internacionalista), devendo, ao contrário, ser
fortalecido, aprofundado e preservado.
O mundo multipolar, principalmente em
seu estágio contra-hegemônico inicial, deve ter como base a solidariedade entre
todas as civilizações na sua oposição às práticas colonialistas e globalistas
do “Norte rico”. Tal luta deve unir as elites e as massas dentro das suas
civilizações, pois o critério das classes (a elite como burguesia e as massas
como o proletariado) é uma projeção do padrão ocidental. Nas civilizações
não-ocidentais existem, de modo empírico e evidente, estratos sociais mais
altos e mais baixos, mas a sua semântica sociológica e cultural difere do
modelo redutor no qual o único critério decisivo é o da posse dos meios de
produção. A TMM apela à solidariedade das elites e das massas na construção dos
pólos do mundo multipolar e na organização dos grandes espaços, de acordo com
os caracteres culturais e históricos de cada sociedade.
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